sexta-feira, 4 de março de 2011

Literatura Naif


Os ingênuos na literatura ou a literatura dos ingênuos.

Estou me propondo um trabalho muito maior do que a minha capacidade, reconheço. Como diria um escritor naif:: é muita areia para o meu caminhãozinho. A idéia é estabelecer um critério para distiguir a literatura profissional da literatura amadora e categorizar os autores ingênuos. Se não der em nada. pelo menos estou criando a categoria "intelectual naif".

Como nas Artes Plásticas, o rótulo de "naif" - eufemismo elegante para "ingênuo" - não é pejorativo. O artista naif não utiliza as regras elementares de pintura em suas obras, como proporção, perspectiva, claro-escuro, incidência de luz e outras formalidades, podendo ser ou não ser formado em artes plásticas. Quanto ao escritor naif, também não faz uso das regras elementares de narrativa, recorrendo a termos, figuras e metáforas simples, frequentemente chavões e estereótipos de uso comum. kitsch?

Logo me dou conta que já foram impressos milhões de livros de milhares de autores exatamente com essas características, principalmente  livros de entretenimento. Os romances em papel barato nas prateleiras das bancas de revista, as histórias de proselitismo do espiritismo ou dos evangélicos, livrinhos de bolso com aventuras de espionagem ou de cowboys, material para o público adolescente,  exemplares que o autor paga para imprimir e vai vendendo às próprias custas. Lugar comum entre todos eles, a superficialidade e o amadorismo.

Alguns são pretenciosos e se oferecem em formato padrão e capas elegantes, distribuídos por editoras poderosas. Seus autores são figuras de alguma ou muita celebridade em outras áreas de atividade, que resolveram explorar o mercado de consumo com o produto livro. Também surgem devido ao interesse do mercado leitor por um assunto em moda, como O Caçador de Pipas e O Livreiro de Kabul. Outros, são acompanhados de marketing pesado e associado a filmes de sucesso, como O Código Da Vince. Todos tem em comum um amontoado de lugar-comum.

Contudo, nenhum é péssimo, horrível ou indigesto, cada um deles encontrando seu público no mercado pois, procurando bem, cada um tem seu mérito.

Na prática, quais os vícios de gramática característicos de um escritor ingênuo? Ocorrem-me alguns, dentre os tantos que tornam um livro difícil de ler, pois o texto fica cansativo e interminável.

I - O uso indiscriminado do "que"

Na frase "E compreenderam, alguns mais cedo que outros, que o Apocalipse estava em curso, e começaram a se preparar para o Armagedon, a batalha final que decidirá a soberania de Haled, que estará aberta à invasão espiritual quando a menbrana cair." do bom livro "A Batalha do Apocalipse", de Eduardo Spohr. Por certo existem muitas outras formas de escrever essa mesma frase sem o uso do "que", todas tornando-a mais direta e clara. Mas o autor optou pela forma indireta e  usou o "que" para auxiliar o próprio pensamento na sua elaboração. O "que" passa ao leitor a impressão de dificuldade do autor em se expressar, como se fosse penoso ou como se tivesse pressa em concluir o trecho e passar logo ao próximo e emocionante patamar da obra. Abrindo o livro ao acaso, são raras as frases onde o "que" não aparece uma ou duas vezes.

Há outro livro, um clássico da literatura (?) intragável, mas é obra traduzida e, portanto, pode ser produto de um tradutor naif ou de um tão ingênuo quanto o original. Chama-se "A Cidade dos Hereges" de  Federico Andahazi, e o trecho, abrindo o livro ao acaso, é "Uma lenda atribuída a Eusébio, que garantia ter se documentado nos arquivos de Edessa, dizia que ao adoecer o Rei Abgar V,  rei de Edessa, e vendo que a sua vida se apagava, desesperado mandou um emissário chamado Ananias para que visse Jesus e o convencesse de que acudisse ao seu reino."
 Aí estão alguns elementos do texto chato:  muitos "ques", argumentos baseados em terceiros baseados em terceiros e tom professoral.

II - Trechos didáticos professorais

A trama segue e a ação é descrita, quando o texto é aparentemente interrompido por uma série de explicações. Neste momento, o autor costuma por na boca do personagem explicações didáticas sobre algum detalhe da história, as quais julga relevantes para instruir o leitor e reforçar as premissas usadas. Nunca parece coisa do personagem. Parece mais que ele foi possuído por algum professor chato que veio nos dar uma aula de história, nos explicar a teoria dos mundos paralelos ou fisiologia dos corpos mentais e astrais sob o ponto de vista teosófico. Muitas vezes, o onipresente narrador muda o próprio tom e sem aviso se mete a nos descrever paisagens de cidades e lugares, como se fosse um enfadado professor de geografia ou um cansado guia turístico.

Acontece durante toda a trilogia "MiIlenium", de Stieg Larsson, nestes momentos o texto para de fluir, parece uma flor artificial no meio do jardim, com a naturalidade de um ator de novela tendo que fazer merchand entre um texto e outro da cena. Até na boca do Professor Langdon, o Código da Vinci perde o ritmo a cada ladainha explicativa.

O leitor se sente ou enrolado ou subestimado nesses momentos. Se a premissa é tão insustentável que precisa uma aula para se manter, abandone-a. Talvez o autor pretenda demonstrar seus conhecimentos nas diversas áreas do saber humano e por essa via cativar o leitor. Talvez, ainda, tenha se deixado influenciar pelo Editor ou por algum leitor crítico, incluindo no texto explicações posteriores à sua conclusão, supostamente destinadas a facilitar a compreensão da obra, porisso soando tão artificial.

É pura arrogância.

III - Contém gordura saturada

Utilizando ingredientes destinados a cativar o paladar do leitor, os livros de puro entretenimento causam a obesidade mental como desagradável dano colateral.

Os sintomas são tão claramente visíveis quanto aqueles causados pela comida fast-food e o excesso de frituras na alimentação, como obesidade, entupimento de veias e descontrole de pressão.

Incorporando temas de grande apelo popular e de leitura fácil e fluente, acabam por afetar a capacidade mental do leitor, que passa a ver reduzido seu vocabulário e limitado o seu raciocínio e agilidade.


Há leitores viciados neste tipo de livro. Acostumando-se a leituras fáceis, passa os olhos pelo texto quase sem prestar atenção e apenas colhendo a descrição da ação, sem conseguir mais interpretar realmente o que lê. Desta forma, os livros de diversão podem ser enormes, compondo trilogias e pentalogias sem fim, uma vez que não são realmente lidos, servindo apenas à voracidade do leitor em sua necessidade de escapismo e ao interesse do mercado editorial. Aos glutões, muita comida.

Tais livros utilizam recursos desleais para cativar o leitor. O mestre Stephen King domina inteiramente este técnica (truque). Inicia a obra com uma situação praticamente insolúvel ou um monstro aparentemente invencível, para resolver no final com um artifício simples ou o heroísmo solitário de uma criança. Ver o final anti-climax de "A Torre Negra" e o monstro que virou otário de "A Coisa".

Outros, transmitem informações superficiais e estereotipadas de uma época, criando personagens de contemporaneidade suspeita, como em Bernard Cornwell. Além disso, aproveitam-se de ganchos místico-religiosos para aumentar o interesse na obra, como nas trilogias da "Busca do Graal" e "Crônicas do Rei Arthur", embasando suas premissas históricas em dados evidentemente especulativos e até fictícios.

IV - Excesso de Adjetivação

Há uma distância entre um texto de substância e um texto vazio: sua medida é o excesso de adjetivação. Quando o escritor diligente procura desesperado palavras grandiosas para contar sua excelente história, acaba estragando tudo. Especialmente quando constitui simples redundância e nada acrescenta.

Em outro trecho de Eduardo Spohr " A aparência desse furioso infernal é como a de um gigante, alto como dois homens comuns e gordo como três ursos selvagens. O abdome ditalado, sempre à mostra, vive sendo acariciado pelas enormes mãos", e por aí vai, com elementos quebrando a rotina da narrativa por acréscimos desnecessários. (Não tenho nada contra esse livro, apenas estou lendo no momento).

V - Idéias Emprestadas

Não gosto só de ler, também me divirto assitindo. Fico pasmo quando assisto o seriado "Outcasts"   (BBC UK) e identifico a idéia central do livro "Crônicas Marcianas" de Ray Bradbury. Procuro bem devagar na ficha técnica da série e não encontro nenhuma referência, pesquiso mais e encontro no blog do 'autor', Ben Richards, suas alegadas inspirações para chegar ao produto final. Fala de "O Senhor das Moscas" e outros, mas nada sobre Martian Chronicles. Só achei um comentário curto de Val, lá no meio, perguntando "Ray Bradbury's Martian Chronicles anyone?". Não sou só eu.

Não acredito em fantasmas, bruxas, rótulo de xampu e orelha de livro. Tudo um bando de mentirosos. Quando a orelha diz que o autor é uma mistura de Tolkien com alguma coisa, é pegadinha na certa. Os caras estão mentindo para vender, tanto quanto mentem os xampus quando afirmam que vitamina pode entrar no corpo através da pele. Para subir, mentem ou assaltam os ombros de um gigante. Assim dizem de George R. R. Martin, do "Guerra dos Tronos", ou Game of Thrones, onde a fugacidade de um seriado de TV ousa se comparar à solidez de um clássico. O "Tronos" até que dá para ler com prazer, mas não é inesquecível.

Em publicidade, a gente costumava dizer que "chupava" uma idéia quando copiava um trabalho alheio. Nas diversas formas de expressão, uns chupam de outros sem cerimônia nenhuma.

De volta ao "Apocalipse", o herói passa duzentos anos no inferno sendo chicoteado todo dia até sangrar. Dean Winchester também, no seriado Supernatural, só fica uns 800 anos a mais.  Daí a comparação que já ouvi por aí, de que esse livro é uma mistura de Senhor dos Anéis com Supernatural. Essa não dá para aguentar. Desisto! Estou fora! Cansei! Vou desopilar lendo uma porcaria qualquer.

V - Personagens idênticos

Uma trama qualquer é composta de personagens. Óbvio. Eles são diferentes entre si, cada um tendo sua idade, sexo, formação, origem, cultura, motivação, etecétera. Muito óbvio. O autor ingênuo não pensa assim.

Para o ingênuo todos os personagens falam igual. Seja o herói, a heroína, o vilão, a vítima ou o covarde, todos enfim, falam no mesmo tom monocórdio. Usam os mesmos termos, pois têm o mesmo arsenal de palavras do autor, que não consegue respeitar a personalidade de cada um e permitir que se expressem como lhes seria natural. Se a história é épica, todos são superlativos e grandiloqüentes. Se a história é moral, todos são piegas e lamurientos. Se a história é infantil, todos são simplistas e repetitivos.

Essa limitação do autor cansa o leitor. Pode ser uma solução para quem tem pouco dinheiro para comprar livro, pois livro ruim demora para acabar. Mas ai não diverte ninguém. 

Literatura?

Claro que nenhum deles é literatura. Podem ser chamados disso por orelhas de livro, por releases comerciais e até por resenhas tendenciosas, mas não contém os mínimos elementos para que possam ser alçados a esse nível.

Apenas Naif.
P.S.
Até que enfim terminei "A Batalha do Apocalipse", foi penoso. Do livro ficou uma impressão que demorei um pouco para identificar. É como se tivesse sido escrito por outra pessoa, alguém muito mais velho e em outra época, talvez nos anos 70 ou 80. É só uma impressão.

Kitsch ou ruim demais - Péssimas capas e péssimos livros.


Livros bons e livros ruins, uma boa opinião.

3 comentários:

  1. Queria colocar somente que, desconhecedor da formação do crítico literário aqui em causa, e levando em consideração minha opinião de que o artista, não se faz mediante sua capacidade intelectual, ou ainda em função do meio social a que pertença, trate-se ou não de um literaturo. E tendo por óbvio que a literatura implica sim em técnica, estilo, até mesmo requinte... O termo "naif" aqui aplicado à literatura, vejo como plausível, ponderando que qualquer indivíduo em condições financeiras adequadas é capaz sim de veicular sua produção enquanto escritor e até tornar-se Best-Seller...para isso conta-se mesmo com a propaganda e mídia, que faz mesmo até do que é medíocre algo de caráter para além desse conceito... Algo de cunho artístico. Ficou confuso para mim no entanto a possibilidade de unir o que é por natureza intelectual ao que é categoricamente "naif". (Na certa por isso mesmo me vi no ensejo do uso de tantos "ques".

    Jose Ivan de Alencar

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  2. Eu acredito no direito de me expreçar, ceja com o portugues errado, ceja com o vernáculo esautado, o que vale mermo é a intensão do corassão!!!

    Ce a mençajem foi paçada valeu a pena!

    Imagine só! Você está passando por uma crise, isolado em uma circunstância caótica em uma cadeia, onde foi preso sem culpa alguma....
    Aí alguém que já passou por isso envia uma mensagem dizendo assim:

    __ Oi, sei que vosse deve de está muinto anciozo por que deve está muinto triste e aflito então eu tenho a saida por que ja paçei pur aí !!
    A saida fica embaicho dessa cama belixe !!!

    Você se recusaria entender a Mensagem? Criticaria o autor da mesma?

    Pode parecer ridícula a minha forma de ver as "Criações" por parte daqueles que desprovidos da técnica, da formação e etc, mas acho que a REGRA muitas vezes obstrui a verdadeira essência!!!!!

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    1. Abençoado, a mensagem do seu exemplo é apenas um recado e não literatura. É a mesma razão pela qual toleramos os erros em comentários nas redes sociais: queremos apenas ler a mensagem, não importa se a pessoa não sabe ou não escrever.

      Agora, com literatura... como é que o indíviduo resolve viver de letras e acha que não precisa saber minimamente escrever?

      @rjflavio

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